No dia antes de tudo, aquele de quem ninguém fala, aquele de que não interessa falar porque já passou, escolheram-na a ela. Porquê? De todas as milhares de probabilidades que havia de não existir, calhou. Nasceu a chorar, porque todos nascem assim, mas será que todos morrem a chorar? Se precisamos de chorar para saberem que nascemos, porque não precisamos disso para saberem que morremos? Choram os outros, mas eles nada são quando a vida de quem, na sua pequena probabilidade de existir, acaba.
Não lhe deram sapatos, teve de caminhar naquele afunilado corredor sem perceber o que se passava, caminhar apenas pelo mero acto de caminhar, sem nenhum objectivo traçado. Finalmente chegou, depois de tanto caminhar, já com bolhas e feridas nos pés, a uma pequena sala pintada de verde escuro, com apenas uma secretária, um tapete e uma estante cheia de dossiers.
Está aqui alguém?, perguntou ela, sem saber se sentia confusa ou cansada do longo trajecto que acabara de percorrer. Apareceu um senhor de cinquenta e poucos anos, vindo não reparou de onde, de fato, bigode e um matreiro sorriso no rosto. Sentiu-se como se estivesse num escritório pronta para uma entrevista de emprego, apesar de descalça, suja e despenteada. Bom dia, disse o homem sorrindo enquanto se sentava na cadeira à secretária. Pegou numa esferográfica e anotou algo num caderno. Desculpe, poderia ajudar-me? Não sei onde estou nem o que devo fazer, disse ela agora certa de que era confusão que sentia. O homem levantou os olhos, sempre com um sorriso no rosto, levantou-se e dirigiu-se à estante, pegou numa das capas e começou a procurar algo. Não disse nada. Pode ajudar-me?, voltou a repetir já com algum desespero, mas voltou a não ter resposta. Começou a chorar, a reação humana natural. Sentou-se no chão e olhou para os seus pés, pareciam ter caminhado sobre um monte de silvas. Trazia um vestido vermelho imundo que tresandava e um casaco com mangas lamacentas. Olhou para as mãos, a única parte do corpo que sentia ser ainda sua, e com elas tocou na cara, sentiu a carne engelhada e uns altos por baixo dos olhos. Devo ter dormido mal, pensou. Não sabe se esteve ali no chão durante horas ou minutos, mas começou a ficar extremamente mal disposta. Não se lembrava da última vez que tinha comido e talvez a volta ao estômago se devesse a isso. O homem continuava na secretária, parecia estar a tirar apontamentos dos conteúdos da capa que consultava.
Entretanto, ele levantou-se, dirigiu-se a um canto da divisão e abriu uma porta, confundível no resto da parede. Fez um gesto com a mão para que ela avançasse. Ela aproximou-se da porta e espreitou, a divisão era escura, o que a fez sentir-se reticente em entrar, não queria ir para ali. A maior virtude do ser humano é a ânsia de aprender e para aprender tem de existir curiosidade, disse-lhe ele, sempre com aquele sorriso indecifrável no rosto. Deveria sentir curiosidade em saber o que existia naquela divisão? Se calhar devia, se calhar era isso que ele queria dizer. Eu prefiro ficar aqui, disse ela, mas ele manteve-se a apontar para a divisão enquanto sorria, quase como uma estátua. Começou a assustá-la e ela, novamente com os olhos cheios de lágrimas, voltou a espreitar para a divisão escura. Pareceu-lhe que o homem lhe tocou na anca, mas estava tão assustada que mal teve oportunidade de reagir. De que nos serve a possibilidade de avançar se preferimos o potencial desconforto de estagnar?
Ao ouvir isto, passo a passinho, lá foi entrando. Ainda mal tinha passado para a outra a divisão e a porta bateu atrás de si, empurrando-a. Ela caminhou para trás até voltar a sentir a porta, e ali ficou na escuridão daquela sala, com as mãos nos bolsos, a sentir neles algo que achava ser seguro.
Perdeu a completa noção do tempo enquanto ali esteve parada. Esperava que aparecesse alguém para a chamar ou que o homem do outro lado acendesse as luzes. Começou a pensar no que ele lhe tinha dito, para aprender tem de existir curiosidade, e começou a mentalizar-se de que deveria aprender o que era aquela divisão. Para aprender tem de existir curiosidade, para aprender tem de existir curiosidade, repetia em voz baixa, com os olhos fechados e as lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto. Um dos seus pés avançou e, de braços abertos para ver se encontrava algum obstáculo, continuou a avançar devagar enquanto repetia sempre as mesmas palavras, como se lhe fossem dando alguma força. O seu pé esquerdo tocou em algo molhado e ela recolheu-o instantaneamente, porque é que estava ali água? Estaria num esgoto? Justificava a escuridão e o silêncio, mas se estivesse no esgoto aquela água seria completamente nojenta, a esconder coisas que preferia não saber estarem ali. Mas, naquela altura, nada lhe restava senão continuar a caminhar, então imaginou a água mais límpida que conseguiu e foi avançando.
Depois de muito caminhar sentiu algo na mão direita e voltou-se para poder sentir o que era. Seria uma parede como a outra? Tentou procurar uma maçaneta, mas não encontrou nada. Frustrada, pontapeteou a parede e, além do som que ouviu quando o pé bateu, e que lhe provocou uma imensa dor, ouviu também um som que lhe pareceu ser vento. Começou a seguir esse som, mas desta vez a correr, porque finalmente havia esperança de sair dali. Quando encontrou luz, correu o máximo que conseguiu até a alcançar, e desse lugar com luz vinha o som do vento. Finalmente ia sair dali.
No final desse corredor inundado de luz, deparou-se novamente com a mesma sala e com o mesmo homem sentado à secretária, que levantou os olhos e esboçou o mesmo sorriso de antes. Viu nele um ar trocista e desatou a soluçar. Era suposto vir aqui parar outra vez? Está a brincar comigo? E o homem levantou o olhar, desta vez com um rosto sério.
A arte de desistir é, irrevogavelmente, a mais humana de todas as artes. Travar um caminho desconhecido, chegar ao seu fim e não ver o que mais desejamos é acreditar que falhamos e essa crença leva quase sempre à desistência. Mas quem nunca desiste, esses sim, vão encontrar o fim que desejam. Ela olhou para ele, como para que o analisar, Mas quem é o senhor? Onde é que eu estou, afinal? Por favor responda-me… ele voltou a debruçar-se sobre os seus livros e perguntou, impessoalmente: Quer tentar outra vez? Ela soluçou ainda mais do que antes e aninhou-se num canto da divisão.
Passados uns minutos, o homem juntou os seus cadernos e papéis, colocou-os debaixo do braço, levantou-se e saiu pela exacta porta por onde ela tinha saído antes. Ela ficou ali minutos, horas, dias, sob a luz constante da lâmpada que iluminava a sala, que molda a sua percepção do tempo. Voltou a colocar a mão no bolso e sentiu conforto ao agarrar um pedaço de papel que lá tinha, o mesmo que lhe deu conforto no corredor escuro.
A barriga dela estava a fazer barulho, a boca começava a ficar seca, estaria sentada naquele canto há dias? O homem nunca mais voltava, mas que certeza tinha ela de que ele iria voltar? Não o conhecia, não sabia se lhe queria bem ou se lhe queria mal, quem era, o que estava ali a fazer. Agarrou o papel no bolso com mais força. Mal se conseguia levantar, doíam-lhe os pés, mas sentiu que se ninguém chegasse entretanto iria acabar por morrer ali, sozinha, abandonada sem saber o que se estava a passar.
Já mal conseguia engolir a pouca saliva que se formava na sua boca, tanto era o desejo de água, e, ao tirar a mão do bolso para limpar as crostas que se formaram nos cantos da boca, o papel que tanto agarrava saiu colado à manga. Ela observou-o, o papel cujo toque lhe estava a retirar um pouco da ansiedade que sentia, que seria aquilo? Desdobrou-o lentamente, amarrotado da força que tinha exercido sobre ele e, receosa, leu o seu conteúdo.
O meu sol põe-se no Atlântico. Quando o vejo pousado nas águas agitadas do nosso belo mar, sinto uma espécie de nostalgia, acabo por sentir uma imediata saudade do que me está mesmo à frente dos olhos, mas quando o vejo ao olhar pela janela de casa ou do escritório penso, como se sentirá o sol noutro lugar do mundo, como se sentirá o sol neste momento em Paris, em Nova Iorque, em Berlim? Será que se sente como eu o sinto aqui? Aqui ele é tão meu, mas eu não queria que fosse este o meu sol, queria que fosse outro, queria poder senti-lo num sítio onde me vissem e onde eu me sentisse valorizada e compreendida, queria senti-lo noutra pele que não a minha.
Não se lembrava de quando poderia ter escrito aquilo, mas era a sua caligrafia, não se lembrava de nada mais senão do medo que sentiu quando se viu naquele corredor estreito, não sabia de onde vinha, não conhecia outra sensação senão aquele medo, mas não podia permitir que ele fosse castrador, ali começou a mentalizar-se que teria de o enfrentar.
Reuniu todas as forças que conseguiu e, passado o que pareceram mais algumas horas, finalmente levantou-se. A cambalear, apoiando-se no que conseguia encontrar, alcançou a porta e abriu-a. Observou novamente aquela escuridão familiar e foi inundada por uma nova sensação. Sentia medo sim, mas não queria continuar naquela sala, não queria ficar infinitamente à espera de algo que não sabia se iria alguma vez chegar, sabia que tinha de enfrentar aquela escuridão novamente e, se voltasse ali como aconteceu antes, teria de voltar a tentar. Inspirou fundo com os olhos fechados e lançou-se a correr pela escuridão, correu mais do que achava conseguir ser capaz, com os pés doridos, aleijada, com sede, com fome, correu com uma força que só podia ser sobrenatural, começou a ver novamente um raio de luz e conseguiu correr ainda mais depressa. Quanto mais depressa corria, mais forte a luz se tornava.
Até que sentiu as pernas moverem-se como se continuasse a correr, mas dentro de um corpo inerte, cega por uma luz tão forte e um burburinho de fundo impossível de decifrar. Continuou a forçar as pernas cansadas, mas, num ápice, deixou de sentir o chão debaixo dos pés, não sentia nada, parecia flutuar. A luz tornou-se mais fraca, mas os seus olhos ainda não conseguiam decifrar o que se estava a passar nem onde estava, vendo tudo não via nada. E, finalmente, de dentro dela, veio ensurdecedor e desesperado, o tão desejado choro.
Ana Jorge Almeida (ela/dela): Nasci, há vinte e sete anos, num vale com tanto de verde como de cinzento, e desde cedo fiz uma separação entre a minha personalidade que gosta de ler e escrever e a que se entrega à lógica e à ciência, sabendo embora, que sem o complemento entre as duas, eu nunca existiria nos parâmetros em que existo, assim como o vale não seria o mesmo se não fosse verde ou cinzento.
Se me encostarem à parede, digo que a Toni Morrison é a minha autora favorita.